Nos últimos anos, houve um boom de intolerâncias alimentares. É certo que os métodos de agricultura intensiva, que são amplamente utilizados pela indústria alimentar, não produzem as melhores frutas e legumes e que a carne das aves criadas em armazéns com luz artificial permanente não é a mais nutritiva. No entanto, parece-me que estamos a atravessar uma “epidemia” de intolerâncias alimentares em que uma das principais causas é a ignorância – afinal, quantos de nós conhecemos verdadeiramente a nossa digestão e sabemos o que andamos a comer?
Neste artigo da série Ayurveda Passo a Passo, partilho contigo a visão ayurvédica da digestão, algumas das principais razões pelas quais surgem certos desconfortos que se parecem com intolerâncias alimentares e dicas para melhorares a tua saúde digestiva hoje mesmo.
Comer dá prazer. Dá prazer sentir o sabor dos alimentos, as suas texturas, temperaturas e cheiros. Comer é uma viagem sensorial, mas acima de tudo é a nossa fonte de energia, que só funciona porque temos um sistema capaz de transformar os alimentos que ingerimos em substâncias assimiláveis pelas nossas células e tecidos. Este sistema tem um motor principal, que em sânscrito se chama agni, ou fogo digestivo.
Cada um de nós tem um agni único, que pode ser mais lento, mais rápido ou irregular. Estas características são fisiológicas/normais, no entanto, podem originar desequilíbrios em pessoas com uma baixa autoconsciência ou, melhor, pessoas que não conhecem bem a sua digestão.
Quero sugerir-te uma atividade que eu tenho a certeza de que vai aumentar a tua autoconsciência: um diário digestivo! Numa primeira fase, podes anotar apenas quanto tempo passa desde que terminas uma refeição até sentires fome novamente – mais abaixo dou-te algumas dicas para saberes identificar a fome verdadeira. Numa fase mais avançada, podes também registar o que comes em cada refeição e correlacionar os tempos de digestão. Ao fim de duas semanas já deverás ter uma boa consciência do teu agni. Partilho contigo um exemplo:
A digestão é o que nos permite transformar os alimentos em substâncias assimiláveis pelo corpo. A indigestão é uma tentativa falhada desse processo. As intolerâncias alimentares existem e o tratamento deve ser seguido por um profissional de saúde competente. No entanto, já acompanhei muitas “intolerâncias” que eram, na verdade, agnis a precisar de atenção e cuidado para poderem cumprir a sua função eficazmente. De seguida, partilho contigo algumas das causas de indigestão descritas no Ayurveda. Experimenta pôr em prática as minhas sugestões e vai tomando nota das mudanças que sentires no teu corpo.
O nosso corpo segue ritmos ajustados às estações do ano e à sua própria biologia. O que o Ayurveda nos ensina é que alguns destes ritmos internos são ditados pelos doshas. Tal como vimos no último artigo desta série, Descobre os Doshas, pitta incorpora o elemento fogo, que é responsável pela transformação e assimilação das substâncias que ingerimos. Assim, o agni, ou fogo digestivo, está mais aguçado nos períodos em que pitta está mais ativo. Estes períodos são:
Antes que penses que jantar às 22:00 é bom, deixa-me esclarecer que no período da noite o agni é usado para fazer limpeza e desintoxicação, pelo que não é adequado estarmos a comer ou a fazer a digestão do jantar. O melhor a fazer neste período é dormir com a digestão já concluída, ou seja, jantar cerca de três horas antes de deitar ou fazer uma refeição mais leve, à base de líquidos, onde podemos incluir a sopa.
O almoço é a principal refeição do dia, pois é quando temos o nosso fogo interno mais disponível para fazer a digestão. Idealmente, deveríamos almoçar entre as 11:30 e as 12:30, beneficiando assim de uma digestão sem efeitos colaterais decorrentes da indigestão, tais como a barriga inchada, as dores de cabeça, o cansaço, entre outras.
Comer a mais é como lavar 8 Kg de roupa numa máquina cuja capacidade máxima é de 6 Kg: a roupa fica mal lavada e/ou o equipamento sofre danos estruturais. Segundo o Ayurveda, devemos reservar ¼ do espaço total do nosso estômago para os gases que se produzem, naturalmente, durante a digestão. Só existe uma ferramenta que te ajuda a perceber quando é que já comeste o suficiente – a autoconsciência corporal. Come devagar, usufrui da tua refeição, saboreia os alimentos, mastiga-os bem, dá tempo para o estímulo nervoso chegar ao cérebro e sinalizar que já estás saciado(a). No início, poderás falhar e comer a mais, mas com paciência e dedicação vais conhecendo melhor os sinais que o teu corpo te dá. À medida que ficares mais consciente, perceberás também que alimentos toleras melhor e pior. Por exemplo, durante muitos anos eu achei que era intolerante ao glúten. Apercebi-me de que havia sempre qualquer coisa que comia diariamente que continha trigo (pão, massa, tostinhas, etc.). Passei várias semanas em experimentação até que percebi que se eu comesse pão apenas duas vezes por semana o meu corpo sentia-se bem.
De uma forma geral, se nos privarmos de comer, a longo prazo definhamos, pois são os alimentos (bem digeridos) que nutrem os nossos tecidos vitais. Se a cada refeição comermos uma quantidade de comida inferior àquela que precisamos, vamos sentir fome mais vezes e, consequentemente, comer mais vezes, o que se pode tornar desgastante para o sistema. As máquinas das lavandarias self-service requerem, certamente, mais manutenção técnica do que as que estão em casa e trabalham três a quatro vezes por semana. O ideal é fazer duas a três refeições principais por dia onde consomes alimentos que te dão energia por períodos prolongados de tempo, tais como arroz integral e as leguminosas. Sempre que sentires fome fora das refeições principais, bebe líquidos ou come fruta fresca que não acarretam um esforço digestivo tão grande.
Quem nunca foi apanhado(a) na correria do dia a dia a engolir comida mastigada três vezes? E a falar de boca cheia? E a engasgar-se porque estava distraído(a)? Não tenho dados estatísticos, mas arrisco dizer que 50% dos casos de “barrigas inchadas ao final do dia” que acompanhei durante o período em que fazia consultoria, ficaram resolvidos com o aperfeiçoamento da mastigação.
No ensino básico aprendemos o que são o bolo alimentar, o quimo e o quilo1, que a mastigação é essencial para transformar o primeiro no segundo e que um bolo alimentar malformado vai impactar todo o processo, até ao intestino. Em que fase da nossa vida é que nos esquecemos disto?
Se sentes que mastigas mal os alimentos porque nem estás a pensar nisso, transforma a hora da refeição numa espécie de meditação. Esquece o telemóvel, a televisão, a conversa com o colega da frente e tudo o que te possa estar a distrair dessa prática preciosa que é alimentares-te. Poderás não conseguir remover todas as distrações, ao fim e ao cabo os espaços de refeição não são templos budistas, mas dá o teu melhor em manteres o foco na tua mastigação. É suposto o bolo alimentar ser uma massa espessa, sem pedaços. Tal como eu ouvir dizer uma vez “bebe os sólidos”.
Apesar de ter muitas vezes origem no estado emocional, ingerir alimentos sem se sentir fome pode ser apenas falta de consciência. Só quando sentimos fome verdadeira é que o agni está disponível para digerir. Se comermos sem fome, criamos indigestões.
O Ayurveda descreve três sinais-chave de quando a fome é fisiológica:
Todos os seres vivos têm um sistema próprio para transformar o seu alimento. Na maioria dos casos, esta transformação ocorre exclusivamente ao nível do sistema digestivo. O ser humano é a única espécie que recorre a um fogo externo e a um fogo interno para transformar o seu alimento – o lume e o agni.
É certo que se perdem alguns nutrientes no processo de cozedura, no entanto, os que ficam, que são muitos, são facilmente assimiláveis pelo corpo. A comida crua é difícil de digerir e o corpo tem dificuldade em aproveitar esses nutrientes. Ocasionalmente, podemos comer saladas, mas é importante mantermo-nos atentos à nossa capacidade digestiva e deixar esses pratos para os dias em que o agni está em full power.
A exceção à regra é a fruta fresca, que pode e deve ser comida crua, e eu ensino-te porquê no Curso Ayurveda Online.
Conheci uma pessoa que não usava sal e, consequentemente, tinha desequilíbrios digestivos. Os elementos que formam o sabor salgado são o fogo e a água, que são os mesmos que formam o dosha pitta, ou seja, o sal é puro digestivo! Pelo bem da tua barriga, tempera a comida com uma pitada de sal de boa qualidade, tal como o sal marinho ou a flor de sal.
O leite, especialmente o de vaca, está descrito no Ayurveda como um alimento naturalmente pesado para a digestão. No entanto, tem características que podem beneficiar muitas pessoas, tais como o facto de ser frio (útil em desequilíbrios pitta). Como beber o leite sem que este seja um peso para o nosso agni? Preparar leite dourado, que tem especiarias que transformam o leite num alimento mais leve, como se fosse alquimia. Eu conheci várias pessoas que julgavam ser intolerantes à lactose e que quando experimentaram leite dourado não sentiram qualquer desconforto: a prova de que a forma como combinamos e cozinhamos os alimentos é crucial para termos uma boa saúde digestiva.
A digestão é mesmo um tema rico. Este foi o artigo mais extenso que escrevi para esta série e ainda ficou tanto por dizer:
Se queres aprender mais sobre este tema, ainda te podes inscrever no Curso Ayurveda Online :)
Com amor,
Mafalda
A informação apresentada é meramente informativa, de índole genérica, não contendo uma análise exaustiva de todos os aspetos dos temas analisados, pelo que não substitui aconselhamento especializado.
1 – De uma forma simplificada, o bolo alimentar, o quimo e o quilo são os três produtos formados durante a digestão. O bolo alimentar forma-se na boca por ação da mastigação e da saliva. O quimo forma-se no estômago por ação dos sucos gástricos. O quilo forma-se no intestino delgado por ação do suco pancreático, da bílis e do suco intestinal.
Ler os artigos anteriores desta série:
1. Ayurveda Passo a Passo
2. Observa o teu Corpo
3. Descobre os Doshas
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